Tenho tido a sorte de apreciar vistosos trabalhos artisticos, habilmente, estruturados em papel recortado e colado mas nunca, nesse domínio, vi nada que se assemelhe de tão magnífico, como são as recentemente publicadas propostas dos Estatutos de Carreiras de ensino superior português - estas sim, são obras-primas de kirigami legislativo.
Já me acostumei, e acho naturalíssima a confusão de ideias desta equipa do Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior; mas, a quantidade de trapalhices exibidas pelos rascunhos (esboços e
drafts) do último pacote de propostas legislativas da educação superior é realmente, soberba - (
ECDU e
ECPDESP) - deixou-me com ganas súbitas de arrancar a cavilha com os dentes! E atirar em qualquer direcção com... como é que aquilo se chama?... Os meus caros e raros leitores sabem do que falo...
Pelo tempo da urdidura, e pelas individualidades que nos documentos se afirma terem sido consultadas, as minhas expectativas pessoais já não eram elevadas, porque duvido muito que, qualquer uma das figuras de proa a quem se diz ter-se pedido opinião para a manufactura das propostas saiba seja o que for do que efectivamente se passa nos seus subsistemas - simplesmente, e para mal de todos os implicados, essas figuras não representam sequer os dirigentes mais efectivos e muito menos representam ou reunem as condições mínimas de poderem representar as sensibilidades das duas comunidades; mas, depois de tentar perceber e deslindar a arte de corta-e-cola da papelada produzida, a baralhação total que, por esses documentos, se instala é elevadíssima.
Felizmente, entretanto, petrifiquei e até encontrei aspectos positivos, de entre uma montoeira sem-fim de medidas que, a meu ver, em nada acrescentam ao sistema superior de educação português antes, pelo contrário, penso que só irão agravar o actual estado das coisas.
Dos poucos aspectos positivos salientaria estes pouquitos:
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PONTOS POSITIVOS (ou, na maioria dos casos, nem por isso)
1º) A instituição da obrigatoriedade de avaliação, na admissão e na progressão nas carreiras, por júris que incluam membros externos às instituições é, de facto, um ponto positivo desses documentos, se bem que, esse procedimento pudesse ser, nas instituições melhorzinhas, já uma prática corrente.
2º) [...] 1 - Cada instituição de ensino superior aprova um regulamento de prestação de serviço dos docentes o qual deve ter em consideração, designadamente:
a) Os princípios informadores do processo de Bolonha, designadamente no que se refere à passagem de um ensino baseado na transmissão de conhecimentos para um ensino baseado no desenvolvimento de competências;
b) Os princípios adoptados pela instituição de ensino superior na sua gestão de recursos humanos;
c) o plano de actividades e orçamento da instituição [...]
Esta exigência legislativa penso ser, absolutamente, indispensável; aliás, nem percebo, como podem agir as instituições --- que, instintivamente, por questões de sobrevivência --- não a tenham já implementado, e que não estejam simultaneamente em manifesta extinção. Mas que há, ainda, instituições que se dão ao luxo anual de happenings e verdadeiras batalhas campais nos órgãos, institucionalmente, incumbidos da distribuição dos orçamentos e de serviço docente; dessas aberrações, acreditem-me, embora em vias de extinção, ainda as há!
3º) Houve também, nesses documentos, a expressão de terem intenção de reforçarem a diferenciação dos dois subsistemas de ensino. Pois..., se foi intenção --- que, na minha perspectiva seria desejável, só que de boas intenções está o inferno a abarrotar --- essa também ficou-se por isso mesmo, e foi bem entregue nas mãos do demo... Se bem que tenha sido uma intenção, desta só resultou uma ferramenta de terrorismo institucional para um dos subsistemas. Lá iremos pormenorizar este aspecto...
4º) É manifesta a preocupação dos documentos com os professores reformados -- esta ideia é muito bonita, e parece muito bem; mas isto será só mais um «pavilhão de conveniência» ou é para levar a sério?
É que se for para levar a sério, não haverá uma forma mais benéfica para os próprios, e muito mais útil para toda a sociedade, para ocuparem as pessoas que se reformam, do que leccionarem? Sobretudo, actualmente, com tanta gente jovem com ânimo e preparação para aceitarem desafios e responsabilidades de futuro, e estes com tão poucas hipoteses de ocupação...
A título de meros exemplos do que entendo por uma ocupação interessante, meritória e exigente em experiência de ensino poderiam ser: i) a produção, organização, manutenção, avaliação e selecção de uma base de materiais didáticos da sua especialidade; ii) a tutoria e supervisão de alunos e docentes nas fases iniciais das suas actividades. iii) a compilação e organização de documentação e materiais museológicos que possam servir de base à elaboração da História dos estabelecimentos de ensino a que estiveram ligados. Os exemplos não se me acabaram, eu é que me cansei...
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Vou agora tentar exemplificar, aos meus caros e raros leitores, primeiro (hoje) algumas das minhas certezas e, em seguida (amanhã ou depois...), também descreverei umas quantas das minhas dúvidas:
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CERTEZAS
1ª certeza - Os conteúdos dos referidos papeis espelham bem os múltiplos "cut-copy-pastes" a esmo e decalcados sobre papelada, com pouco uso e préstimo, diga-se, mas já muito idosa (30 anos para o Universitário e 27 para o Politécnico). Os seus autores nem sequer se deram ao trabalho de apresentar as suas sugestões em versões consolidadas, como se imporia numa legislação que, hipoteticamente, suportará nas próximas décadas a gestão de recursos docentes das nossas instituições de ensino superior.
PROVA - No penúltimo artigo de ambas propostas de estatutos, sobre Republicação, diz-se o seguinte: 1 - É republicado, em anexo ao presente decreto-lei, do qual faz parte integrante, o Estatuto da Carreira .... , aprovado pelo.... ; de facto, a vingarem as propostas apresentadas trarão consigo sempre a reboque um regresso ao século passado durante o primeiro lustre, bem medido, deste século.
2ª certeza - Os conteúdos da proposta do Politécnico foram remanejamentos pouco atentos dos textos da proposta do Universitário.
PROVA - Artigo 35.º-B dos estatutos do politécnico, sobre Efeitos da avaliação de desempenho - diz-nos que esta é uma das condições que deve ser satisfeita para:
a) A contratação por tempo indeterminado dos professores auxiliares.
Professores auxiliares? no Politécnico? ou esta será mais uma «banda» de colaboradores a serem considerados no politécnico.
3ª certeza - nestas versões de estatutos observa-se a insistência nas diferenciações "redondinhas" nas duas carreiras, de uma forma tal que, vão-me desculpar, mas nem eu conseguiria ser tão.... Não Digo!
EXEMPLO: Repararam que reincarnou aquele o epítoto qualificativo da investigação "orientada" para o caso do politécnico, e também uma desajeitada troca de ordem do mesmíssimo número de alíneas do texto em tudo semelhante com que se descrevem as funções dos docentes em ambos os subsistemas?
Todos ensinam o que podem, todos investigam o que sabem, e todos fazem trabalhinhos de gestão institucional, enquanto esticam uma perninha no desenvolvimento cultural e das populações, etc., etc., isto é, todos têm oportunidade de se tornarem, funcionalmente em canivetes-suiços, com aplicações multi-usos.
Farão todos, por assim dizer, de tudo um pouquinho... ou, o que será mais provável, CONTINUARÃO todos a ser avaliados por fazerem de tudo em coisa nenhuma.
4ª certeza - a serem aprovadas estas propostas, é a primeira vez que vejo, por escrito, mediante a conservação de todos os deveres, uma autorização legislativa para se trabalhar de graça.
PROVAS: "Os professores convidados podem, por acordo com a instituição de ensino superior, prescindir de remuneração mediante celebração de um contrato pelo qual mantêm todos os restantes direitos e obrigações", esqueceram-se de lhe acrescentar frase: [...] olhem, e não digam que vão daqui...
Fica a sugestão, e também a recomendação que os proponentes destes geniais textos, também considerem o aperfeiçoamento da ideia de que se pode começar a exigir o pagamento, à cabeça e em dinheiro vivo, de emolumentos substanciais, não só para os que implorarem de joelhos para poderem trabalhar por um muito obrigada em regime de voluntariado -- mas a todos os docentes "convidados". Que tal?
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(Seguir-se-ão, se não ainda mais certezas, as minhas duvidazinhas,...)